Quarta-feira, 22 de Abril de 2009

Atrás da Cortina Verde

Hoje chegara mais cedo daquele escritório que já não suportava mais. Estava farta daquele ambiente artificial, de toda a etiqueta no trato e na indumentária, da quantidade de documentos de extrema responsabilidade, a que tinha de dar resposta e despacho diariamente e das víboras das suas coleguinhas que todos os dias a cumprimentavam com os seus sorrisinhos cínicos, quando ela sabia que a invejavam por todos os motivos. Invejavam a sua beleza, porque tinha consciência dos seus evidentes atributos físicos, invejavam o lugar de destaque que ocupava na empresa, certamente supondo que o teria conseguido à custa de dormir com o director. Esqueciam-se no entanto que, nos últimos cinco anos, tinha sido ela a principal responsável pelo sucesso da empresa e pela sua elevada taxa de produtividade. Sem ela, a empresa não teria sobrevivido face a tanta concorrência. Subestimariam certamente as suas capacidades, cegas que ficavam quando todas as manhãs a viam entrar bombasticamente no departamento de Gestão. Odiava os seus cumprimentos matinais exagerados, quando percebia que a estudavam invejosas, da ponta dos seus fulgurantes cabelos negros até ao limite dos saltos de agulha. Eram umas cabras dumas cínicas e porém, não se tocavam quando lhes devolvia o cumprimento secamente e sem mais delongas.

Tinha entrado no seu jardim, já há muito tempo repleto de ervas daninhas ... perdera a paciência para o cuidar impreterivelmente todos os fins-de-semana e aparar toda aquela relva que o circundava. Apenas continuava a ter cuidado em cortar as pontas da hera que se esgueirava pelo portal acima. Entrara em casa, subira as escadas, entrara no seu quarto, descalçara os fatídicos saltos de agulha e esticara-se um pouco na cama. Inspirou profundamente, esticou os pés doridos e rapidamente se perdeu em pensamentos, fazendo um balanço da sua vida. Percebeu como estava a viver uma vida errada, aquela não era a sua vida, a vida por que tinha ambicionado desde pequena. Desde que se lembra, que sonhara em ser designer de interiores ou jornalista, porém e apesar de ser uma excelente profissional naquilo que fazia, não se sentia realizada atrás de uma secretária a assinar documentos, preencher formulários e tabelas, preparar orçamentos, ... todo um trabalho estéril, estúpido e repetitivo, num ambiente ainda mais estupidificante, artificial, desinteressante e pleno de relações de interesse. Tinha-se imaginado ao lado de um homem culto, instruído e charmoso e com dois ou três filhos lindos que correriam para ela, para a abraçar e beijar quando entrasse em casa, ao fim de um cansativo dia de trabalho. No entanto, só encontrara homens estúpidos e ignorantes que a admiravam mais pelos seus fogosos e voluptuosos seios e pelas suas salivantes e firmes nádegas de marfim, do que pela sua inteligência e, quando entrava em casa, depois de um dia de trabalho, apenas era abraçada pelo esmagador silêncio e pelo peso da solidão. De que lhe valera tanta beleza, que ainda permanecia quase plena apesar dos seus 42 anos, se só atraía homens brutos e mal casados sedentos por experimentar aquilo que improvavelmente teriam em casa e a suas cínicas coleguinhas que, com 25 e 30 anos, só conseguiriam enfiar as suas calças justas e apertadas, no pescoço ... se elas sequer supusessem como ela se sentia uma mulher frustrada e incompleta, talvez a começassem a ver com outros olhos. Mas não, era melhor assim, continuariam a vê-la entrar no escritório para cumprir as suas funções sem mácula e sempre de cabeça erguida ... claro que as suas coleguinhas não poderiam jamais percepcionar a sua tristeza, seria um regozijo para elas. Deixariam de sentir inveja para nutrir alguma pena e ela era demasiado orgulhosa para lhes dar esse gostinho e no final de contas, só se sente inveja de quem se admira de alguma forma. Apesar de as odiar de morte, a sua inveja ainda era o alimento que a mantinha de pé um dia depois do outro e ela precisava desse alimento, quase mais do que a própria vida. Perdida nestes pensamentos, apercebeu-se de um som de crianças rindo e gritando, vindo do exterior. Levantou-se de sobressalto e aproximou-se da janela do quarto. Desviou discretamente a cortina verde e rapidamente se apercebeu que se tratava dos filhos dos vizinhos da casa ao lado. Brincavam no jardim alegremente, tentando molhar-se um ao outro com a mangueira e rindo de satisfação, enquanto o pai, aquele homem corpulento e que a cumprimentava todos os dias educadamente na sua voz calma e grave, podava as trepadeiras e um salgueiro-chorão frondoso, que nos dias mais quentes, refrescava a sua própria casa, pela sombra que lhe proporcionava. Tinha as mangas da camisa arregaçadas, deixando transparecer dois braços tonificados e vigorosos ao mesmo tempo que cortava os ramos com firmeza e a segurança de um homem com convicções próprias. Imaginou aquelas duas mãos grandes e possantes envolvê-la e afagar-lhe os seios e isso deixou-a um pouco excitada e algo ansiosa. Sempre fora ela a controlar os homens, a deixá-los submissos como cordeiros; porém, este perturbava-a completamente, sensação que, para si, era absolutamente nova e algo desconfortável. Desde o primeiro momento em que aquele casal se mudara para ali, que ela se apercebera daquele homem, daquele monumento à masculinidade, exactamente o seu tipo, fisicamente era com toda a certeza e aparentava sê-lo também na personalidade. Mas claro, apesar da proximidade, tinha de ser casado e com filhos e, de homens casados e mal-casados que só lhe queriam saltar em cima, estava ela farta, eram todos iguais. Talvez este não fosse sequer nada do que ela imaginava, poderia ser apenas o seu desejo a nublar-lhe a mente e a racionalidade, talvez fosse só ela e a sua mente a especularem algo absolutamente ilógico ... além do mais, ela é que dominava os homens e estava fora de questão o contrário. Mas para que estaria ela para ali com tanta dedução, se jamais se envolveria com tal pessoa, no fundo não era mais que a voz do seu desejo reprimido a falar mais alto, mas não o desejo simples de ter aquele homem. O que ela desejava mesmo era ter aquela vida, a vida da esposa daquele homem. Quando falou com eles pela primeira vez, apercebeu-se da naturalidade e da simplicidade com que a cumprimentaram, foram e eram sempre muito educados e atenciosos. Reparou também, pela primeira vez, que um homem a cumprimentara como pessoa e não como um naco de carne pronto para ser devorado, sem aquele brilho de caçador e cobridor nos olhos. Isso prendeu-lhe ainda mais a atenção e a curiosidade por ele. Mas ela jamais faria algo que comprometesse aquela agradável relação de vizinhança, diplomática, um pouco formal, mas tão gratificante. A esposa, uma professora de História e Geografia de Portugal do 2ºciclo, não tinha o seu ar fulgurante de mulher fatal, mas era muito bela, tinha um ar cândido e desprotegido. Teria certamente uma idade semelhante à sua, mas com a sua pele de porcelana, de um branco imaculado, com aquelas engraçadas sardas no nariz e um sorriso puro e infantil, parecia uma menininha, daquelas pessoas que parece que nunca envelhecem e que não têm idade. Desde o primeiro momento se mostrou disponível para consigo. Tinha-lhe dito que sempre que precisasse de legumes ou fruta ou outra coisa qualquer, que batesse à sua porta e seria sempre bem recebida. Mas na realidade, se tivesse de pedir algo, seria com toda a certeza o marido ... e isso nunca iria acontecer.

A partir daquele dia, do dia em que percepcionou aqueles braços viris, começou a observá-los a todos com maior frequência. Chegava do trabalho, subia ao quarto e colocava-se atrás da sua cortina verde. Tornou-se quase dependente daquela espécie de voyerismo, algo que ela reprovaria  com toda a certeza nos outros. Viveu a vida daquela família e daquela esposa como se fosse a sua própria vida, como quem assiste a uma novela televisiva e vive toda aquela representação com maior intensidade que os próprios actores. Observava as crianças a brincar no jardim e apetecia-lhe correr para elas e apertá-las maternalmente junto ao  seu peito. Observava o seu vizinho que chegava de pasta, fato e gravata todos os dias, entrava em casa sempre por volta das seis horas da tarde ... passados 15 minutos já ele estava de fato de treino no jardim a participar nas brincadeiras dos filhos ou a tratar de algo, carregando ou martelando umas tábuas, cuidando do jardim, regando ou aparando a relva. Mais tarde chegava a esposa, carregada de duas pastas, uma onde traria o portátil toshiba e outra provavelmente cheia de documentos vários, actas, fichas, tabelas, relatórios, sempre carregada, mas sempre sorridente. Por vezes, sobretudo aos fins-de-semana, observava-a no jardim enquanto os filhos brincavam de modo efusivo ... nessas alturas parecia ausente, por vezes notava-a apática, olhava para os filhos de braços cruzados e algo inexpressiva.

Atrás da cortina verde, observou mês após mês aquela família. O pai sempre bem-disposto, as crianças muito enérgicas e com os seus risos estridentes, a mãe bem-disposta e com um sorriso genuíno por vezes, outras aparentemente ausente. Por vezes não parecia feliz e notara agora que raramente a vira abraçar os filhos. De facto, aquela afável senhora, aquela simpática e amorosa senhora não era muito dada a agarrar os filhos, a participar nas suas brincadeiras e muito menos a acarinhar o marido. Com o tempo dera-se conta que aquela senhora, aquela mãe e esposa era muito mais agradável consigo mesma do que com a sua própria família. Por várias vezes a convidara para tomar café, convites a que se furtava com desculpas várias, vinha cansada do trabalho, tinha dor de cabeça, teria de sair para um jantar, etc, etc ... no fundo, sentia-se comprometida em estar na sua companhia ou em estabelecer maior proximidade, quando na verdade invejava a sua vida e pior, andava a vigiá-la há muito tempo. Como encarariam eles, se um dia resolvesse dizer-lhes que os observava atrás da cortina verde do seu quarto, há tanto tempo? Que pensariam de si?

Um dia de manhã preparava-se para sair de casa quando se apercebe que tem uma carta no chão junto à porta de entrada ... do seu conteúdo, por respeito e como solicitado pelo remetente, nunca chegou a dar conhecimento. A sua vizinha, aquela simpática senhora sem idade, tinha-se despedido desta vida porque na verdade, aquela nunca tinha sido a sua própria vida, a vida que deveria ter sido a sua.

 

Brama

 


publicado por Brama às 23:09
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De Graduated_Fool a 23 de Abril de 2009 às 22:29
Aquela foi a sua vida, mas não a que quis para si... ou quis em tempos e depois deixou de querer... Mas foi a sua vida, mesmo sentindo-se mais que morta.

Um excelente exemplo daquilo a que se pode chamar de vidas trocadas. Uma quer o que a outra tem e, quem sabe, a outra quereria o que ela tem. Aparentemente seria simples, era só trocarem. Mas a vida não funciona assim, infelizmente.

Talvez não tenha tido a força para mudar, para largar tudo, para se adaptar positivamente ao que tinha... e desistiu daquela vida, da sua, da vida, sem deixá-la ser outra, a vida que queria. Preferiu a morte à luta, quem sabe os motivos.

Um excelente texto muito ao jeito do notável filme/livro "As Horas" que, como sabes, adoro.

Ah, e não acho que a inveja seja sempre em relação aqueles que, de algum modo, admiramos. Eu não admiro nada muita gente endinheirada que por aí anda e tenho inveja daquilo que podem ter e fazer com o dinheiro que têm.


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